Incertezas

Neste mundo morto
Vivo à cena da desilusão
Do incompreendido
Pessimismo à dor da emoção

Se me sinto forte, sou fraco
Se estou de sorte, vem o azar
E saber o preço da verdade (que não há)
É ler na areia e o vento levar

Tudo se torna efêmero
Quando se descobre o real atrás do muro
A vida é cega, o amor é surdo
O abstrato não é pago com dinheiro material

De que adianta; elevar a garganta
Para ensinar o óbvio
Nos ouvidos dos alienados?

De que adianta; saber a verdade
Para depois tranformá-la
Nos pronúncios da honestidade?

De nada adianta
Andar no deserto, sem água pra beber
Se podes caminhar no inferno
Queimar a própria alma
E a morte temer.

Terra do Sol

Desceu correndo! Foi-se arrastando os pés rachados à terra inclinada. Como corisco, corria. Ia descendo o barro de lama seca. Ia descendo a areia dura. Cada piso no chão: poeira. O Sol queimava-lhe as costas nuas − e raquíticas. Os olhos, olhos negros, esbugalhados da lua brilhavam ao solar, mas a poeira embaçava a visão. A cor da pele era cor do sertão. Correndo! Como corisco! Corria à pique de leopardo. Pisava, ao mesmo tempo, fraco para ser rápido e forte para ser firme (sem firmeza não há corrida).
Havia som? Era um rabisco sonoro. Som de poeira que se esvai ao vento e se desfaz com o calor do sol. Som de ar quente, tal qual queima os pulmões. Se houvesse trilha sonora (Ah! se houvesse!) estaria tocando uma batida tapada de cordas da viola. Tambores surdos sem ritmo, mas com batidas ocas: roucas. E cada vez mais, forte mais rápida seria a batida da viola. Corria! Corria!
Poeira de sertão não cheira a poeira: cheira a pó seco. Pó de vento. Pó de poeira. No máximo uma vaca morta carcomida cheirando a carne fresca, recém queimada pelo sol. Nariz, nessas terras, não serve pra cheirar. Serve para aspirar o ar − metade ar metade pó. Não existem impurezas na Terra do Sol. Apenas pó: mais puro impossível. A poeira fazia parte do corpo. Corre!
− A paz do sertão é guerra. Se estiver interligada a quem foge do sol. Porque o ser humano não sobrevive sem suas necessidades. Faz de tudo para regar a alma. Com que água se rega alma na Terra do Sol?
− É absolvido aquele que rouba para viver daquele que vive para roubar?
Ninguém dizia nada. Era o céu conversando. Sem espiritualidade. O céu limpo, sem nuvens. Elevava o tom ao nível de não ser ouvido. Ninguém ouve o céu. Ninguém imagina o céu falar. Ninguém não imagina muitas coisas.
E a verdade estava explícita. Corria, o corisco, por ter furtado. Furtou teu próprio pão. Pão feito de tuas mãos. Seu trabalho árduo na plantação de trigo. Para onde ia o trigo? Onde estava a indústria? Onde estava sendo feito o pão? Onde seria vendido? Bendito seja o pão do corisco, roubado, então, por ele mesmo. Sua própria alma não sustentava mais o peso da fome. Quem não come não pensa − quem come demais também não.
− Suas pernas sem energia agüentavam a corrida? Agüentariam?
Corria na seca. Cada metro era um pão no sangue. Suas energias não vinham mais do alimento. Vinham da alma. Quem tem alma usa-a até o fim. Já ofegante, de cabeça para cima, corria sem ter aonde ir. Corria para o final do infinito. Esperança ele tinha. Queria continuar vivendo, fugir da seca.
A alma se esvaía.
Perdia o poder do céu. Pedia o poder do céu. Nada recebia. Porque quem não ouve não fala. Pois não pode ouvir a própria fala. De que adianta nadar no mar, sem mar?
E corria.
Corria!
Corria.
Cada vez mais fraco, mais lento, mais pesado, mais leve.
Corria.
Andava.
Caminhava.
Caía.
Dormia.
Para nunca mais acordar: dormia − de olhos abertos. Olhos nervosos, olhos negros. Boca aberta, poucos dentes: dentes fracos. A poeira sob o corpo embaçava a visão do céu.
− Morreu.
− A alma se perdeu, mas com esperança. Morreu feliz por ter a procurado. Pois na Terra do Sol ninguém perde a esperança, nem mesmo a encontra. É como saber do pai vivo, mas nunca ter o visto na vida.
Quem procura acha. Mas muitos acham que procuram. Não sabem o que é procurar. Não sabem o que é viver de buscas. No sertão, quem chora tem suas lágrimas evaporadas pelo seu, mas não viram gás: viram poeira.
− Correu de quê?
− Correu da morte. Ou da vida.
Daí o céu se calou. E, à beira da morte, o corisco ouviu as últimas palavras.
− Vida.

Guerrilha

O meu destino não mais é um simples passado
O que eu continha de esperança agora está fechado
E todas as vezes em que sofri eu relembro calado
Metade do meu tempo estive realmente selado
Agora os desvios em que vivi são lembranças passadas
E a vida em que vivi corre em grandes estradas
Deixei para trás tudo o que havia garantido
Para viver sozinho e neste mundo perdido.

Eu andei em mil brasas e queimei minhas mágoas
Estive tanto tempo feliz mas agora eu sou nada
O que restam de mim são alegres lembranças passadas
Tudo foi em vão, a porta do meu destino está fechada
Onde foram parar os rios em que nadei são?
Onde foram parar os meus filhos em que lhes dei pão?
Onde foi parar a mulher que eu tinha no coração?
Foram todos destruídos pela guerra da nação.

Histórias inventadas
Subir ao palanque, dizer algo, e logo correm
Histórias inventadas
Subir no avião e viajar enquanto milhares morrem
Histórias inventadas
Subir na vida e fazer com que os outros desçam
Histórias inventadas
Subir na bolsa e fazer com que próprias riquezas cresçam
Tão tristes hitórias inventadas
Tão felizes vidas invejadas, e eu aqui numa vida indesejada

Pareceu tão rapido e tão distante
Antes era um nacionalista amante
E agora sou esquerdista praticante
E luto para que isto não avance

São milhares de pessoas como eu, sem nada
São milhares de gente como eu, na estrada
À espera de socorro e até agora, nada.


Hoje não posso voltar
Pena ter que ceder
Eu queria matar
Agora quero morrer

Alucinógenos

Minha alma apodrece
Minha cabeça explode
Meus olhos cegam
Minhas pernas sambam
Ouvidos distorcidos
Saliva quente
Cheiro de suor
Tudo sem cor

Drogas, mas mal que dor
Cores vivas, mundo sem cor
Sol quente, frio ardor
Arco-íris incolor

Sensação de alívio
Sensação de morte
Sensação, bem estar
Pura sorte
Grana a acabar
E enquanto minha cabeça virar
Roubar, matar, trucidar
Enlouquecer
Amar, sem amar
Matar, sem gritar
Roubar, sem matar
Cair, sem levantar
Morrer, sem se deitar

Negras nuvens de lua reluzente
Céu amarelo, quente muito quente
Suor que não sai do corpo, mas sente
Olhos sem equilíbrio, sem lente
E enquanto minha cabeça virar
Roubar, matar gente
Sem selar meu corpo sob a morte
Morrer aos poucos sem cair
E viver da sorte, sem mentir
A vida é um ar de surpresas, irei rir
Pra acabar com a dor de alívio
A dor de bem-estar
A dor de morrer sem estar morto
A dor de não sentir mais o corpo
A dor de não sentir dor
A dor de sentir muita mais dor
A dor de não ter amor
Nem precisar saber o sabor
De inúmeras alegrias da vida
Que hoje se transformam em feridas
Passado rosa, futuro incolor

Beira do Meio-Fio

Sentados à beira do meio-fio, reclamavam de suas malditas vidas.
− Desgraça. Tenho que trabalhar amanhã. Naquela merda de lanchonete.
− Vida fácil a sua. Não precisa carregar sacos cheios de cimento dum caminhão para outro. Minhas costas tão fudidas.
Ao mesmo tempo em que carros passavam em alta velocidade, os dois fumavam como chaminés. Conversavam uma mistura de palavras e tosses.
− Esse show foi de fuder. Tava querendo espancar uns otários lá. Aqueles que passaram pela nossa frente com duas putas gostosas.
− Tou ligado.
− Pior foi a terceira briga. Quando quebraram a garrafa na cabeça do gringo. Respingou cachaça em mim!
­− Tou ligado.
− Eu devia ter espancado esse também. Meu braço tá peguento feito a porra. Próxima vez vou meter o pau neles. Gasto uma grana do cacete pra comprar essa camisa gringa e aquele filho da puta me faz uma coisa dessas.
− A camisa é do Paraguai.
− Sim, meu irmão! Mas é importada, porra!
− Do Paraguai.
− Vai tomar no seu cú! Custou vinte conto essa desgraça. Tudo isso eu gasto num show desses e ainda sobra!
− Tou ligado.
Um carro a cento e quarenta quilômetros por hora passa pela rua. Tão rápido que esvoaça a fumaceira dos dois rapazes sentados.
Da porta sai outras pessoas. Bêbadas e drogadas − ou drogadas e bêbadas. Pisando falso e berrando risadas. O som do show fica alto durante um momento e depois volta a ser abafado pela porta que se fecha.
− Que é que tá rolando agora?
− Forró. Pé de serra universitário. O baixista eu conheço, porque tocava no palco principal da minha faculdade.
− Faculdade? Você fez faculdade? Há! Não me diga que pagou pra estudar!
− Que nada! Ganhei bolsas de estudo. Eu era um dos melhores estudantes no meu colégio público. Daí o diretor me fez essa proposta.
− Bela sorte a sua. Mesmo assim eu não faria. E como teria minha grana nisso? A faculdade bancaria meu almoço? Minha janta? Meus shows?
− Não, mas você poderia trabalhar à manhã e estudar na tarde.
− Eu trabalho o dia inteiro e ganho uma merda de salário. Imagina se fechasse meu turno apenas pala manhã? Nem vem.
Mais uma vez a porta se abre. Mais uma vez o som se esvai. Mais uma vez um carro passa. Como uma rotina urbana de madrugada.
Dessa vez o som não é abafado.
− Vai lá! Eu lhe espero aqui.
Uma jovem de corpo definido desce as escadas do casarão e atravessa a rua, passando pelos rapazes. Vai até uma farmácia. Demora um pouco e depois sai com um saco pequeno na mão. O que tinha dentro pareciam caixas.
− Pegou tudo? − o homem que segurava a porta perguntou.
− Peguei. Toma o troco.
− Fique com o troco! Só quero isto. − e pegou o saco da mão da garota. Entrou com ela e fechou a porta. Daí então o som foi abafado novamente.
− Que coisa era aquela?
− Não sei, cara. Acho que eram alucinógenos medicinais ou alguma merda qualquer. Hoje em dia tão se drogando até com calmante.
− Tou falando da mulher, porra.
Nesse momento surge um carro conversível cheio de mulheres. Pára perto da farmácia. Sai dois gringos do automóvel e voltam da farmácia com sacos cheios de preservativos e viagra. Entram rindo e sorrindo. Depois somem em alta velocidade.
− Não sei o que essas putas vêem nesses otários. Só porque têm um carro de cem mil, dinheiro até pra enfiar no cú e uma oportunidade pra morar fora do país.
− É isso que elas vêem neles.
− Um dia eu vou trabalhar como empresário, ganhar uma grana da porra e comprar o carro do ano! Aí vai vir um monte de gostosa pra cima de mim!
− E, provavelmente, eu, sentado num meio-fio como este, lhe chamaria de otário.
− Calma, velho! Você ia estar comigo também. No carro!
− Legal. Seríamos dois otários.
− Meu irmão, tu é chato pra cacete viu! E me passa a outra carteira que a nossa acabou.
− Tenho não. A última foi esta. Você fumou duas lá no show!
− Que cú! Minha boca vai ficar seca agora!
− Bota palha nela que tranqüiliza.
− Onde tu tá vendo palha aqui, desgraça?
− Do seu lado tem um vaso de samambaia. Pega umas folhas.
O rapaz olha pro lado, faz uma cara feia.
− Eu? Botar essas folhas na boca? Tenho cara de retardado, é? Além do mais devem estar todas mijadas.
− Você fuma maconha e reclama de colocar folha na boca.
− Maconha é maconha. Folha é folha, porra!
− Não. Maconha é folha. Mas folha pode não ser de maconha.
− Essa aqui é uma samambaia!
Pausa. Os dois se olham. Testas franzidas.
− Você é um cabeça de jegue mesmo.
− E você é um sunga branca.
A porta se abre. Aparecem outros dois rapazes. Um loiro, alto, pele avermelhada. Outro moreno, baixo, corpo forte e inchado.
− Qual foi, trutas? Tão fazendo o quê aí fora? − pergunta o loiro.
− Bicho. Tamos fudidos aqui. Na quinta briga deram a porra dum chute na minha canela.
− Nessa hora eu me saí! − diz o moreno forte, sentando junto ao meio-fio também.
− Porque? Você é uma bicha mesmo!
− Eu não. Tava sem saco pra ficar levando chute na canela, sabe...
Os quatro, sentados na beira do meio-fio, conversaram durante um longo tempo. Falavam de sexo, drogas e pagode. Contavam sobre várias brigas, vários shows, várias dopadas. A porta do casarão se abria, às vezes, denunciando alguém saindo, nunca entrando. Carros em alta velocidade não paravam de passar, mas o recorde mesmo foi daquele que passou a cento e quarenta de quilometragem. A fumaceira do grupo acabou, porque a carteira acabou. De vez em quando uns jovens entravam na farmácia, compravam algo e saíam. Essa rotina durou um bom tempo, até o rapaz loiro se despedir.
− Pois é. Tou me indo agora. Pegar no batente amanhã às seis.
− Eu também, às oito. − responde o moreno.
− Vão passar pela avenida? Uma carona sairia bem agora.
− Pra mim também, se forem passar pelo campo da cidade.
− Vamos passar só pelo campo. A avenida fica do outro lado. − responde o loiro.
− Então beleza. Quer que a gente inteire seu táxi, sunga branca?
­− Que nada, cabeça de jegue. Eu vou andando mesmo. Uma paletada, mas é melhor. Assim eu aproveito pra comprar meu café da manhã lá no mercado.
Os três se levantaram acenando pro rapaz.
− Falou, então. − diz o moreno.
− Vê se da próxima vez não cata a garota daquele gangster! O cara te ameaçou de morte, velho!
− Mas ele tava bêbado. E, além disso, aquele ali não mata ninguém. É só do tráfico, tá ligado?
− Tou ligado.
E saíram. Três pra um lado. Um pro outro. Uma carteira de cigarros, latas de cerveja, garrafa de vodka, baseado de maconha, tudo no chão. A madrugada estava fria. Poucos carros passavam dessa vez. A brisa noturna derrubou uma das latinhas. Ela foi rolando, caiu do meio-fio, rolou de novo, chegou num bueiro e sumiu.
Sumiu.

Jantar

Noite. Sentaram todos à terra molhada pós-chuva: Homens fortes, fracos, jovens, velhos, muito jovens, muito velhos; Mulheres fortes, fracas, jovens [...].
O Ancião Pajé iniciava o assunto. Primeiramente falava da fé em Tupã, como a lua em que os raios incidem uma iluminação ciano-escuro sob a Taba. Em segundo, falava sobre as árvores que doavam frutos em troca de carinho, cuidados, amor. Por terceiro, dizia dos animais - desde os menores inocentes aos maiores ferozes -, o quanto eram preciosos para a sobrevivência humana.
Então iniciava o assunto: Memórias. O índio ao lado falava de teu passado íntimo ou público, como quisesse. Ia de pessoa em pessoa. Ninguém ousava não falar, nem mesmo queriam. Pois a arte da comunicação e memorização de fatos era presente na vida indígena como o lazer mais benéfico e satisfatório a todos.
Enquanto isso. A anta jazia morta e queimada, despedaçada entre todos. Refeição que promove a resistência e saúde do povo. Água em potes de argila eram engolidas sem pausa, com as duas mãos. Satisfeitos tanto coporalmente quanto mentalmente, iam às suas ocas, cada família, desfrutarem-se de um longo sono nas esteiras de palha. O sol parecia só acordar quando todos acordavam, e não o contrário. Enquanto a lua protegia a alma de todos que dormiam vulneráveis. Era Tupã, contente de ser amada e venerada por seus filhos.
Concedeu uma chuva leve. Para conforta-los e irrigar suas vidas.

Madeira Doce

Veio como quem andava à suspeita de algo. Era preciso no caminhar. Levemente agachado ou levemente levantado, afastava as latifolhas da floresta em busca da sua caça. Olhos rápidos, grandes, negros demonstravam a árdua sagacidade misturada à bravura do Tupi. Seminu, fixou seus olhos na anta. Sentou sobre os próprios calcanhares levantando seu arco de madeira doce. Puxou o cipó forte com sua flecha armada. Fisgou. Mais almoço e jantar na taba durante dois dias. Resultado da experiência de caça do nobre Índio Brasileiro.