quarta-feira, 30 de outubro de 2024
Guaporã
quinta-feira, 24 de outubro de 2024
Certeza
Dois Cigarros
Minhas caminhadas diárias eram de lei. Todo santo dia eu ia, a qualquer hora. Pra onde não sei.
Caminhava até a orla, pra esquerda. Noutro momento, pra direita. E assim seguia. Na semana eu já tinha feito uns trinta quilômetros e nem sabia.
Mas de uma coisa eu sei. Bem lá na fachada da farmácia perto do restaurante chinês, um senhor havia. Ele era assim bem parecido com Raul Seixas, mas um tanto mirrado. E olhe que Raul já era meio mirrado (e birrado também). Mas esse senhor tinha o jeito contrário de Raul. Era calmo, sereno, humilde, simples. De poucas palavras, mas no bom sentido.
Pra mim, era um morador de rua. Estava quase sempre lá numa melancolia. Cabeça baixa. O bigode escondendo a boca. Sua expressão nua e crua como se não tivesse nada na memória a esconder de ninguém. E é aí que a história vem.
Logo na segunda ou terceira vez que o vi, dei-lhe um cigarro. Ele pegou com tamanha humildade e carência que eu disse “Tome logo dois”. Foi aí que, apois, ele abriu um singelo sorriso. Depois disso, toda vez quando eu passava por lá lhe dava dois cigarrinhos. Minha carteira sempre cheia. A dele nem existia. Mas isqueiro ele tinha. Como minhas caminhadas eram de lei, e ele estava lá quase todo dia, fui criando um laço.
A gente não falava nada. No máximo, eu dizia “Tudo bem”? E ele concordava com a cabeça, sem sequer dar a graça de sua voz. Foram manhãs, tardes e noites em que eu caminhava a qualquer hora. Pra onde, não sabia. Mas se passasse por lá, lá estava ele. Era só eu aprochegar e ele sorria. Seu sorriso singelo e sereno. Seus olhos humildes, com ar de quem já sofreu muito na vida e continua a sofrer. Mas, quem sou eu pra dizer? A gente nem sequer conversava pra saber.
A questão vem agora. O tempo ia passando e, cada vez mais, eu não o via. Demorou bastante pra chegar uma hora que ele estava lá, na mesma fachada da farmácia, do mesmo jeito. Deu-me até uma alegria. E eu nem sei por quê. Mas, novamente, abri a minha carteira e peguei dois cigarros. Entreguei na mão dele. A mesma sintonia. Só que nesse momento eu não sabia:
Foi ali nosso último dia.
Caminhei, caminhei. Nada. Nunca mais o vi. A todo momento que passo por lá, não mais o vejo. O ver era meu ensejo. Se eu soubesse que nunca mais o viria, teria dado minha carteira inteira. Todinha.
Olha que bobeira a minha. Achar que os cigarros eram o que nos unia. Que nada. Eu caminho porque tenho depressão. Faz parte do meu dia a dia. Não sei da história dele, porque ele nunca se abria. Mas sei que o que nos fazia sorrir um pro outro era a pura e simples atenção. Era o olhar e se entender. Era a ausência da agonia. Ou a presença da harmonia. A labuta do viver.
Nunca mais o vi desde então. Hoje, eu caminhei. Pra onde, não sei. Mas ao passar por lá, na fachada da farmácia, peguei minha carteira e dois cigarrinhos deixei. Até porque se, por acaso, ele ainda existir, nossa atenção um com o outro é de lei. Na minha cabeça construo a ideia de que um dia há de vir para nos reencontrarmos. Eu adoraria vê-lo de novo sorrir.
Tem coisas que a gente só aprende vivendo. Outras, nós morremos para aprender. Se um dia eu vê-lo, vocês vão ver: vou voltar rindo de alegria. E não será só pelo cigarrinho que dei. Será pela atenção. Pela simples e pura atenção e companhia que recebi e deixei.
segunda-feira, 21 de outubro de 2024
Sós Derrotas
quinta-feira, 17 de outubro de 2024
Rosa
quarta-feira, 16 de outubro de 2024
Há Desdéns Plutão (2)
Errara cara do cavalo
Ao azar deste modelo
Da justiça facciosa
Cordialmente sectária
Nua, crua, mas secreta
Faz o feio virar belo
Uma magia horrorosa
Ela bate o seu martelo
Justo ele, tão singelo
Tão injusto, tão sem elo
Não repara em quem zelo